Sobre mim, sobre você e sobre ela

Eu queria tocar a campainha do céu. Você, na ponta dos pés, abriria a porta. Talvez estivesse só de fraldas e pés descalços. Uma possível meleca no nariz. Eu tentaria pegar você no colo. Assustado, fugiria de mim. Arriscaria uma brincadeira – ou cócegas, no auge do meu desespero – e você ia achar graça. Porque as crianças acham graça! Ou não. Você já passou por tantas coisas que talvez não ache o mundo um lugar engraçado ou gracioso. E a verdade é que ele costuma não ser – o que me entristece é que você, tão nova, já tenha descoberto isso. Na última terça-feira, 11 de julho, uma criança de três anos perdeu a vida em Santa Maria. Ela foi vítima de violência doméstica. Os agressores? A mãe e o padrasto.

Algumas histórias não são boas de serem contadas ou agradáveis de serem ouvidas. A televisão nos mostra e, na hora do almoço, ninguém quer falar sobre o assunto. O único comentário que costuma rolar é um “têm coisas que não dá para acreditar, né?”. Não dá para acreditar e, então, não acreditamos… E seguimos como se isso não fosse real – a vida precisa seguir, afinal. Escolhemos nos proteger (por covardia) e praticar a aceitação (e o egoísmo). Vira banalidade. Mas aí eu me lembro da minha afilhada de quatro anos, tão inteligente, incrível e “cheia de graça”, e entendo que a humanidade não falhou em sua capacidade de amar, mas na má distribuição do amor. E do dinheiro. E da educação. E da comida. E de tudo que se propôs a fazer.

Nós não temos o dom da empatia, o dom do amor ou o da compaixão. O que temos, na verdade, é o dom de desenvolvermos os melhores e os piores sentimentos do mundo – o que é tão encantador quanto, mas exige um pouco mais de nós. A crônica, como uma mágica, chega ao mundo para nos despertar e nos educar para essas emoções. Porque eu não escrevo fantasias, roteiros hollywoodianos ou histórias para dormir. Eu escrevo sobre mim, sobre você e sobre ela. As histórias que ninguém quer ler, mas que todos torcem para que sejam escritas. Se a crônica é sobre nós, ela não é apenas sobre a vida. Ela também é sobre a morte. É sobre tudo, ou sobretudo, no que está entre. Crônica é sobre o choro e o riso – às vezes, no mesmo texto -, como a vida é – às vezes, na mesma hora.

Se a crônica fosse alguma parte do ser humano, seria a pele. Não adianta ignorar – fechar os olhos ou os ouvidos -, quando algo te corta, vai doer. Quando algo te arrepia, é impossível evitar: vai arrepiar. A crônica não é a televisão e os seus olhos, não é o rádio e os seus ouvidos – e não é melhor que nenhuma delas -, é apenas o que há de mais animal em nós. É a reflexão marginal. A consideração sobre os nossos acertos e fracassos – esses que grande parte da humanidade evita pensar. É, talvez cronicar seja um respiro de autoconhecimento e, por isso, de esperança. Alguém precisa deixar registrado que, apesar dos romances encomendados e das ficções que enchem as salas de cinema, a realidade continua extraordinária!

Dessa Terra, no fim, a gente só leva a meleca do nariz – uma semelhante a que a criança a qual foi tirada a graça teria se abrisse a porta para mim, e essa mesma que a minha afilhada, tão amada, também tem. E isso é importante que a gente nunca esqueça: o mundo gosta muito de apontar as nossas diferenças (religiosas, culturais, ideológicas). É o que dá ibope. Mas contar as histórias do cotidiano é uma oportunidade de mostrar que as nossas semelhanças são muito maiores que as discordâncias. Porque se você olha para o lado e não consegue ver o outro, aqui você vai ver o outro olhando para você – e isso vai te cortar a pele, se for preciso; ou arrepiar, se nós tivermos alguma sorte. Quem lê sobre a realidade de quem está distante não corre o risco de achar que a vida é pequena. Ela é grande – nem sempre longa, nem sempre graciosa, mas sempre grande, como só um amontoado de palavras poderia ser.

Manuela Mezomo Fantinel.

Foto de Renan Mattos

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