Tenho uma caixa cheia de caderninhos. Sou repórter à antiga, dos que ainda rabiscam num papel. Não uso iPad e não tenho Twitter. Pensando bem, eu até poderia estar twittando num iPhone, porque minhas anotações certamente não têm mais do que 140 caracteres. Às vezes é só uma palavra, e está ali apenas para ser o gatilho da memória. No meio de uma confusão, daquelas que a notícia adora, não há tempo para escrever muito. Você precisa é amarrar bem o fato ao cordão da lembrança. Escrevo: “furdunço”, e basta para eu recordar o tamanho da encrenca. Aí é só descrever o que se passou, auxiliado pelo frescor do recém-acontecido.
Nada de mais, não é prodígio algum lembrar de algo tão recente. Mas posso me gabar de entender um texto deslocado de seu tempo e de seu contexto. Garanto que consigo. Aliás, nem texto é. Refiro-me a fragmentos de percepção: uma frase, uma palavra, um sinal rascunhado há mais de vinte anos. Minha proeza é garimpar – em cadernetas amarelecidas e atafulhadas num baú antigo – histórias inteiras, coerentes inteligíveis. Como um arqueólogo que recompõe uma cidade perdida a partir de um único tijolo encontrado por acaso, eu sou capaz de restaurar dias vividos no engatinhar de minha profissão.
O curioso é que não lembro bem das reportagens, do que publiquei, do que escrevi à época. Meus rabiscos me remetem mais às circunstâncias e às pessoas do que ao fato em si. Dia desses, eu li: “roda d’água”, e imediatamente a memória me trouxe o Rincão dos Minello, pequeno aldeamento rural, ali na subida da serra, onde ainda vejo uma junta de bois sulcando a terra e uma ancião italiano bebericando a grapa feita em casa, enquanto a água do arroio impulsiona a roda que toca o moinho.
Sobre o que era a reportagem? Não sei, não tenho a mínima ideia. A lembrança nítida é dos rostos, dos olhos, dos movimentos da família, das ações. Como estará hoje o Rincão dos Minello? Que será que aconteceu durante esses vinte e poucos anos que se passaram? E para que serve esse tipo de lembrança? Provavelmente para nada. Eu gostaria é de lembrar onde foi que deixei os meus óculos. Enquanto eu me ponho louco tentando encontrá-los, xingo minha falta de memória. Mentira. Eu me lambuzo de meu excesso de memória para lembranças que afagam a alma.
*Crônica publicada no seu livro Províncias: crônicas da alma interiorana (Editora Globo, 2013). Hoje, Marcelo já possui Twitter. As circunstâncias do tempo mudam…
Marcelo Canellas.
Foto de Renan Mattos.
Como sempre, refinado. Parabéns
Adorei❤❤❤