Uma casa ficava defronte à outra – apenas a ruazinha estreita a separá-las -, como gêmeas face a face, com o mesmo telhado colonial, com as mesmas janelas venezianas, só que uma era pintada de verde e a outra de branco. A porta da casa verde era simetricamente oposta a da casa branca, como se nascidas de um só desenho, moldadas por um único pedreiro metódico e obsessivo, e depois assentadas de modo a reconhecerem-se, feito siamesas que quarteirões vizinhos separaram.
Em cada uma dessas casas vivia uma mulher. Ambas jovens, ambas bonitas, mas, por razões diferentes, uma não sabia da existência da outra. A moça da casa verde, enfurnada nela mesma, com as janelas sempre trancadas, deixava um único vestígio de presença humana no lixo modesto e frugal que ela depositava todos os dias em frente à porta em horário misterioso e não sabido. A moça da casa branca, luminosa e exuberante, deixava as janelas escancaradas, de onde onde enxergava o mundo, e para onde o mundo lhe punha os olhos. Das frestas das janelas trancadas emanava, às vezes, o som quase inaudível de uma televisão. De resto, só mudez. Do vão escancarado das janelas opostas fruíam acordes de rock’n roll e o burburinho das visitas em uma sala sempre cheia.
Ocorre que a casa do silêncio incomodou-se com a casa do barulho. E a moça oculta abriu sua janela enferrujada. Ficou chocada com o que viu: a alegria explícita de amigos bebericando, dançando, gargalhando. Ofendeu-se. Chamou a polícia. A radiopatrulha apareceu, mas não havia razão para autuar o viço discreto de uma reunião dançante em uma tarde de domingo. A moça oculta se trancou de novo. Praguejou contra o sistema, contra o governo, contra o aparato policial omisso, contra a impossibilidade de calar a vida que lhe agredia.