O silêncio da noite era como um jogo. Quanto mais prestava atenção na sua calamidade, mais parte eu me sentia do enredo. Talvez também como nos filmes, quando você imagina a cena clássica de uma menina sentada na janela de seu quarto observando as estrelas ...
Um vulto invade a sala. Nada de fantasma; como sempre, temo. No lugar, um pequeno vulto, quase minúsculo, se faz presente. Estamos todos na sala, frente à TV que grita as dores de um documentário investigativo. As crianças estão com os olhos voltados para as luzes que saem do aparelho, o clímax está perto...
Eu me faço a pergunta acima desde meados de 2002, quando o jornalista Nilson Vargas, então editor-chefe do recém criado Diário de Santa Maria, me convidou para publicar crônicas no jornal que ele estava implantando. Eu, de pronto, recusei. Disse a ele que era repórter de televisão e que não sabia escrever crônicas...
Ele disse que tudo já foi dito, então eu respondi que não falamos o suficiente sobre a paz, porque ainda estamos em guerra. Ele disse que as palavras são apenas uma faísca de luz na escuridão, então eu disse que uma faísca foi o suficiente para que eu não me perdesse. Ela me iluminou...
Uma casa ficava defronte à outra - apenas a ruazinha estreita a separá-las -, como gêmeas face a face, com o mesmo telhado colonial, com as mesmas janelas venezianas, só que uma era pintada de verde e a outra de branco. A porta da casa verde era simetricamente oposta a da casa branca, como se nascidas de um só desenho,...
O Zeca Baleiro não dormiu comigo, mas hoje eu acordei com uma vontade danada de mandar flores ao delegado. Pensei em enviar um cartão com duas ou vinte palavras de desesperança ou otimismo. Não sei se fujo ou se grudo: os extremos não desistem de mim...
Encontrei o Velho sob os escombros de seu passado. Ele agonizava, arfando o peito em devaneios incompreensíveis. Fiz menção de retirá-lo, tentando arrastar seu corpo fraco para fora. Mas ele me ordenou que parasse. Então pontificou, lívido de remorso: “Tenho saudades...
Já ouviu falar em uma casa muito engraçada, que não tinha teto e não tinha nada? O mapa indica o melhor caminho de acesso: a história da pobreza. De acordo com o calendário, a data ideal para pegar a estrada é entre o Dia das Crianças e o Natal, um suspiro de realidade no espirro comercial. ...
Voltei do trabalho mais cedo. Assim que entrei em casa, Maria apontou para o embrulho imenso, assentado no chão da sala: - Chegou o baú. - Que baú? - O baú que o senhor comprou.
Mais um Natal, um verão e um outono e eu serei jornalista. No próximo inverno, quando as crianças parecerem ursos com capuz e os adultos parecerem crianças, eu realizo um dos meus sonhos mais antigos. Se eu afirmasse que há alguma certeza em tudo que planejo para os próximos dez anos, o destino me enviaria uma carta com um longo “hahahahaha” – ...
Eu a conheci no elevador. Ninete não sorriu. Ninete não me cumprimentou. Nem na primeira, nem em nenhuma das outras muitas vezes em que descemos ao térreo ou subimos juntos até o nosso andar. Morávamos nos extremos opostos do corredor, mas isso não nos afastava tanto quanto seu mutismo, quanto a indiferença glacial de Ninete. ...
Cultura, história, política e arte. Na rua, no palco, no céu ou no inferno. Para rir, chorar, refletir ou esquecer-se de tudo. Na expressão, no silêncio, no grito e na música. Um gênero, uma construção ou uma ferramenta de transformação. É ele: o remédio ou a faca. O amor ou o ódio. O luxo ou a merda. ...
Digamos que se chame João. Pois o tal João parou sua caminhonetona importada na vaga reservada para idosos, no estacionamento do supermercado. João não é idoso, está bem longe disso. Mesmo assim levou o tempo que foi necessário para encher seu carrinho de compras, reclamar do tamanho da fila, ...
Sobrevoando o Rio de Janeiro. À minha direita, no assento do corredor, uma mulher lê um livro que diz, em letras grifadas, “A história não é justa”. À minha esquerda, de olhos fechados, uma carioca segura um terço entre os dedos e cantarola um samba. “Onde é que nós estamos?”, ...
Na última quinta-feira de setembro, dia 28, uma mulher de 47 anos saiu do cinema, em um shopping de Brasília, abraçada à sua filha, de 20, quando um homem enfurecido se aproximou das duas e passou a agredi-las com sopapos e insultos. Na delegacia, para onde foi levado depois do ataque, ...
Eu te localizei nas redes sociais. Fui para encontrar (e encontrei) algumas selfies aos sábados, fotos do seu cachorro aos domingos, amigos, hambúrgueres, livros e praias. Foi como chegar a um novo país! Mas como eu poderia afirmar que te conheço se andei apenas pela avenida principal? ...
O que tem o cheiro de mato que me puxa? Inflo as narinas e a bafagem orvalhada que emana do capão me abre uma senda de lembranças sensitivas. Meus pés flutuam sobre a cama fofa de folhas decompostas, e vou deixando pegadas na picada onde chumaços de barba-de-bode pendem de angicos ...
Hoje eu acordei “meio rebelde”, eles disseram. Qual é, dormiu de calça jeans e amanheceu estressada? Nem quero imaginar qual seria a reação se eu admitisse: veja bem, esta sou eu sendo mansa! Troque os verbos – eu não estou, eu sou. Eu sou a sigla de três letras que destrói relacionamentos e assina cartas de ...
orge é uma pessoa incrível. Está aí um cara que eu admiro. Ele é médico e já atuou como voluntário em missões humanitárias na Amazônia Ocidental, no coração da selva, onde doutor nenhum quer sujar o jaleco, cuidando de índios tuberculosos e curumins desnutridos. Também viveu em Guiné Bissau por dois ...
Foi no aeroporto que conheci uma senhora chilena desbravando terras neozelandesas. Ela queria visitar a neta, pensou que mais tarde poderia ser muito tarde – acontece nas melhores famílias – e embarcou sozinha, do Chile à Nova Zelândia, em uma viagem de doze horas de avião. Seus olhos tristes não se ...
Quarta-feira que vem é o dia do gaúcho. Já tem quase 30 anos que eu não moro mais no Rio Grande do Sul, mas todo ano, quando o 20 de setembro se aproxima, tiro onda com quem estiver por perto, seja lá onde eu me achar no momento. Digo que somos politizados, digo que somos cultos, digo que somos ...
Na praia, ser criança é colocar os pés na areia e pular as ondas do mar de mãos dadas com um adulto. A aventura não é algo a se preocupar – as pequenas-grandes emoções são supervisionadas por pessoas que nos amam e jamais permitiriam que algo de ruim nos acontecesse. Maré mansa e nascer do sol: ...
O carteiro da minha rua acho que se chamava Jair. Naquele tempo os carteiros vestiam um uniforme mais puxado para o cáqui, não era o amarelo berrante que usam hoje. Jair tinha um sacolão de estopa a tiracolo, de onde puxava cartas escritas a mão. Isso não existe mais. Não por causa da aposentadoria do ...
Na entrevista de emprego: – Qual a relevância do dinheiro para ti? – O suficiente para que eu saiba que dinheiro compra tickets de viagem, mas não o bastante para passar por cima de alguém ou ser cúmplice de algo que eu não concordo. – E se precisasses escolher entre dinheiro e reconhecimento? – Bom, eu ...
O velho tinha a cara magra e alva, ornada por olhos de um azul diáfano e triste. Olhava como se doesse, como se a luz turquesa de sua mirada fosse a fagulha renitente de um pesar remoto. Chovia mansamente. As gotículas carreadas sobre as telhas saciavam a sede dos sabiás que, empoleirados nas ...
Estive no Rio de Janeiro. Fuscas coloridos enfeitavam o Leblon enquanto Caetano Veloso, Gilberto Gil e Gal Costa, com os pés na areia, respiravam música. Caetano brindou: “Eu organizo o movimento. Eu oriento o carnaval!” e, então, eu acordei. Os brasis que eu não conheci também fazem parte de quem eu ...
Há no amor um tempo insondável, etéreo e fugidio, impermanente e impalpável. Eu te vi agorinha, sinto a luz ainda quente dos teus olhos, embora isso tenha sido há anos. Eu não sou mais quem eu era naquele dia remoto. E nem tu és quem eras. Mas a lembrança fossilizada do momento preciso em que o ...
Uma crença no folclore e na literatura da Índia indica que todos os recém-nascidos, no primeiro ou no sexto dia após virem ao mundo, recebem a visita de um deus. Na testa, o deus escreve como será o futuro do bebê – a duração da vida, a ocupação profissional, o nível de pobreza/riqueza e a casta. Com ...
Cidades são como pessoas. Têm cara, fisionomia. É certo que umas têm gênio forte e outras são frouxas e sem graça. Umas são soturnas e rabugentas, outras alegres e luminosas. Mas cidade é feito gente, vai formando a personalidade nos traços herdados e nas experiências vividas. A identidade urbana é feita de ...
Na sala de espera: Júlia: TU POR AQUI? Eu: Oi... Como assim? Júlia: Ah, é que tu escreves umas coisas tão lindas... Eu: Tá, e daí? Júlia: Não, nada não... Eu quis dizer que... É bom saber que alguém como você também vai ao psiquiatra...
Tenho uma caixa cheia de caderninhos. Sou repórter à antiga, dos que ainda rabiscam num papel. Não uso iPad e não tenho Twitter. Pensando bem, eu até poderia estar twittando num iPhone, porque minhas anotações certamente não têm mais do que 140 caracteres. Às vezes é só uma palavra, e está ali apenas ...
Eu queria tocar a campainha do céu. Você, na ponta dos pés, abriria a porta. Talvez estivesse só de fraldas e pés descalços. Uma possível meleca no nariz. Eu tentaria pegar você no colo. Assustado, fugiria de mim. Arriscaria uma brincadeira – ou cócegas, no auge do meu desespero – e você ia achar graça. Porque as ...