Escrito nas estrelas

Ele disse que tudo já foi dito, então eu respondi que não falamos o suficiente sobre a paz, porque ainda estamos em guerra. Ele disse que as palavras são apenas uma faísca de luz na escuridão, então eu disse que uma faísca foi o suficiente para que eu não me perdesse. Ela me iluminou. Ele disse que o Brasil anda bem, que os pássaros ainda voam e os cantores ainda cantam, então eu respondi que suponho que sim, o Brasil anda bem, especialmente quando não ignoramos as vidas que andam aos tropeços. Os pintores ainda pintam, mas não com o mesmo entusiasmo. Ele disse que antigamente as relações eram mais verdadeiras, então eu disse que a nostalgia pertence a quem nunca lembra por qual motivo foi embora. Ele quer reatar o casamento para não viver vidas contraditórias, mas ele é contraditório. Ele disse que sou racional, então eu disse que escrever é brincar com facas e que são necessários alguns cálculos de cautela para cronicar sem amarras. Ser exata sendo das letras. Ser livre sem ser refém da liberdade.

Ela disse que queria ser uma grande estrela da música, então eu respondi que muitas outras queriam ser como as poucas que já são. Se ela quisesse ser algo que ainda não há e, portanto, não é, vencia o jogo. Tornou-se um ícone – única e atemporal. Ela disse que o namorado de uma amiga é mais interessante, que o emprego de uma prima é mais inspirador, que a casa de uma colega é decorada com mais delicadeza e que só o batom vermelho da secretária harmonizava atitude e elegância com tanta maestria. Eu respondi: o seu namorado é atencioso com o porteiro e comenta sobre os seus planos como quem fala “com” e não “sobre”. Vocês sonham juntos. O seu trabalho, não tão incrível, permite que você tenha as tardes de sábado livres e o bidê do seu apê me leva para um clipe dos anos 90. Eu quero morar no caos romântico da sua morada. Talvez o batom vermelho não seja o seu melhor amigo, mas o seu olhar, o seu perfume, a sua espontaneidade e o seu coração são elogiados daqui até o Piauí. Eu disse para que ela se ouvisse: embora adorasse se olhar no espelho, raramente olhava para si. O reflexo só mostrava uma centena de mulheres que ela jamais seria – e sequer gostaria de ser se experimentasse algum dia.

Ele disse que o fim do mundo está chegando, então eu disse que, se estamos vivos, é possível que a morte chegue a qualquer momento. E não é que ela chega o tempo todo? Ele disse que concorda com o linchamento do menino que roubou a carteira de uma senhora, então eu perguntei se também concordaria com o próprio linchamento quando, embriagado, quase atropelou uma jovem na saída da balada. Ele disse que eu sou louca e eu não disse nada – ufa! Concordamos em algo. Silenciei e ele gritou que eu não sou como Clarice Lispector e Cecília Meireles, então eu disse que nunca tentei: quando decidi ser eu, a vida me reconheceu. Olhei para o céu e ele parecia, finalmente, conversar comigo. Brilhava para mim como brilhava para todos os outros. Não era tarde para descobrir que eu não era a mais bonita e nem a mais inteligente, mas, veja bem, não sou pior que ninguém. Foi a forma que encontrei de amar a mulher que eu me tornei.

Eles disseram muitas coisas. Todos eles, em algum momento, acreditaram que deveriam. Eu ouvi. Eu sempre ouço. Você também. Mas quando eu ouvi quem mais me conhecia, me encontrei no chuveiro conversando sozinha, como eu costumava fazer aos oito anos – uma época em que cantamos com fervor e sem plateia. As bandas de garagem ainda me emocionam bem mais que os grandes espetáculos. Não é sobre vocação, sucesso ou habilidade. A vida é sobre coragem.

Ele me disse que tudo já foi inventado, então eu disse que ninguém inventou liberdade maior que a de querer ser quem se é. Estava escrito nas estrelas (sempre está): você só consegue olhar para o outro com sabedoria quando aprende a olhar para si com generosidade. O lado de cá não irá se calar: as minhas histórias sou eu quem vai contar.

 

por que é que o amor do outro é sempre mais bonito?

por que é que o adeus do outro é sempre

menos

doído?

se todos aqueles que se desencontram

deixam algo

distorcido

nunca satisfeitos com a entrega ou a censura

sempre existe um vizinho com uma mulher mais pura

como faço para ser eu mesma,

e ainda assim,

ser tua?

o romance do outro

é sempre mais verdadeiro

eles ganham mais, transam mais, confiam mais

o mundo do outro é sempre mais inteiro

e assim, desatamos os laços

sobra um amontoado

de nós

em nós

que não conseguem ser felizes

mas não sabem andar a sós.

 

outra noite, outro beijo, outro plano

vou morrer sem ter dito:

eu te amo!

 

eu não quero mais estar em nenhum outro ninho

vamos viver a magia do mundo real

sem comparações

com o vizinho

o amor

mais bonito

é o que continua vivo

quando precisa

caminhar

sozinho

 

o amor do outro é cachaça

o meu é água e sal

o amor do outro vive com festas, flores e fotos

o meu

vive à margem

 

marginal

 

pare de procurar

do outro lado da janela

 

repare em quem te para

 

e está

à tua espera.

 

a vida mais incrível é aquela que você viveu.

 

Por Manuela Fantinel

Foto de Renan Mattos

 

 

 

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *