Com amor, Eu

O Zeca Baleiro não dormiu comigo, mas hoje eu acordei com uma vontade danada de mandar flores ao delegado. Pensei em enviar um cartão com duas ou vinte palavras de desesperança ou otimismo. Não sei se fujo ou se grudo: os extremos não desistem de mim. Bater na porta do vizinho e desejar bom dia? Prefiro deixar um bilhete. Foi como reagi ao ouvir o menino do térreo cantando Engenheiros do Hawaii – arranquei uma folha do meu caderno e escrevi “não pare de cantar” com a confiança que só um marcador de texto (rosa choque) consegue transmitir. O mérito não é meu, mas ele não parou. Não é por acaso que as palavras têm o meu crédito: eu e a escrita vivemos um relacionamento onde eu sou a lua e ela é o sol. Em todas as minhas fases, as letras me iluminam. Hoje eu sou um metro e sessenta e nove de sonhos que só existem porque estão sendo escritos – mas se eu só me reconheço na escrita, quem conhece os 12,9 milhões de brasileiros que não escrevem (Pnad, 2016)?

Enviados de Aracaju ou do Alabama, recebidos no presídio ou na Igreja, os telegramas, muitas vezes, trazem apenas o desenho de um coração. E ele é um dos remetentes. Não é um homem muito talentoso, mas sente a necessidade de se expressar. Sem coragem de dizer “eu te amo” para a nova namorada, pediu socorro ao sobrinho de onze anos: “Eu vou declamar um poema. Você escreve para mim? Quero entregar para ela”. Após perder mais uma oportunidade de emprego por não conseguir preencher o cadastro, lembrou-se dos pais com rancor – eles nunca puderam ler uma história para ele dormir e, embora soubessem que estudar é importante, contavam com o esforço do filho para manterem a casa.

Ele parou na padaria do Joaquim para chorar. Desistiu de desistir, lembrou que precisa ler a biografia do cantor que embalou os seus delírios mais secretos na infância, quando sonhava em ser engenheiro para construir um estádio de futebol. Os mapas que coleciona seguem na última gaveta da cozinha – “há quem diga que o mundo é grande, mas eu só acredito lendo”, brinca. Ele não conhece os seus direitos. Ele não se reconhece no espelho. Ele é “ele”, sem nome, uma digital que assina. Ele representa em torno de 8% da população acima de quinze anos no Brasil (IBGE, 2015), o 8º país com mais analfabetos do mundo (UNESCO, 2014).

Mais solitário que um vilão de filme mexicano, ele persistiu. Escolheu as suas melhores palavras e, com a perfeição de um soneto escrito em letras garrafais, pediu a namorada em casamento. O filho nunca dormiu sem antes ouvir um conto e o livro de geografia ganhou um lugar especial na estante, onde agora ele expõe a coleção de mapas: “e não é que o mundo é grande mesmo? Eu sempre desconfiei”.

Colei a mensagem “não pare de acreditar” em centenas de portas, mas como ainda há uma parcela da população que sequer é convidada a sonhar, precisei buscar outras formas de me comunicar. A poesia não é para quem lê, é para quem sente: deixei de lado a caneta e fui beijar o português da padaria, enviei um telegrama para uma amiga que está viajando com o recorte de duas borboletas e torço para que o moreno que mexeu comigo tenha entendido que a sequência de emojis significava “eu te amo”.

Com ou sem registros escritos, o importante é que saibam que eu, analfabeto, existo. E se você encontrar um marcador de texto (rosa choque) por aí, lembre-se que a história não é apenas sobre quem a escreve. O mundo é grande, eu sou de fases e não é pela minha assinatura que você se lembrará de mim. O cartão para o delegado dirá mais ou menos assim:

Com amor,

Eu.

Por Manuela Fantinel
Foto de Renan Mattos

 

Cronica falada

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