Sobrevoando o Rio de Janeiro. À minha direita, no assento do corredor, uma mulher lê um livro que diz, em letras grifadas, “A história não é justa”. À minha esquerda, de olhos fechados, uma carioca segura um terço entre os dedos e cantarola um samba. “Onde é que nós estamos?”, eu pergunto, apontando para a janela. Márcia abre os olhos para me localizar na sua cidade e se sente à vontade para me localizar na sua vida – há décadas, ela se dedica à psicologia e à Unidos da Tijuca. No aeroporto, se despede de mim com um “se cuida, viu?”. Não vou andar na corda-bamba, mas também não prometo andar na linha: “pode deixar, Márcia, vou manter o equilíbrio!”, respondo ao entrar no táxi. “A cidade está muito perigosa”, comenta o taxista, “só que os jornalistas exageram”, complementa, me entregando um recorte de jornal. “Vê aí, sou eu! Fui homenageado. Uma moça esqueceu a bolsa e eu fui atrás dela para entregar!”, explica. Capricho bom, se é que existe, é o de quem faz questão de ser lembrado pelas bonitezas que fez. Que infelicidade saber, admitir e aceitar que aqueles que se apequenam para tornarem-se eternos têm suas preces atendidas.
Quem explica as tragédias em que o causador decide acabar com a própria vida logo após a conclusão do “ato”? Qual a motivação? A falta de motivos é justamente uma das explicações? Tempo não é sinônimo de reconhecimento – às vezes, ele passa e você nem vê. E o mundo não vê você. O anonimato não é o problema – a fama é mesmo tão banal; cruel é olhar para trás e não sentir orgulho, olhar para frente e não ver saída. Eles, que não têm mais nada a perder, presumem que ganhar seja encontrar (ou criar) uma razão para ser lembrado, ou seja, dar um sentido à vida mesmo que ele só se concretize com a morte.
Quem você culpa quando não se orgulha do adulto que se tornou? Já somos jovens demais para culpar o tempo e velhos demais para culpar a vida. Quando chega a hora de encarar o passado, eles se acovardam sem hesitar. Se os sábios pensam demasiado, os medíocres agem sem pensar… E nós, educados para sentir culpa e para culpar, escondemos a bondade e anunciamos a maldade incessantemente nos noticiários. As nossas vaias soam como aplausos para quem nunca atraiu os holofotes: que ironia! Será que estamos promovendo os criminosos que só queriam se promover? Amanhã é o “Dia das Crianças” e uma parte de mim quer escrever sobre a tragédia de Janaúba, mas eu acredito que um segurança que ateia fogo em uma creche não merece ser o centro das atenções. Falar sobre a paz no meio da guerra é reencontrar a lucidez e despertar para a verdade: nós não podemos nos distanciar de quem nós somos. E nós somos bons! Nascemos livres!
O que é ser criança? A resposta varia de acordo com o contexto sociocultural. As crianças não sabem menos que os adultos, elas só sabem outras coisas. Para além das argumentações sobre altruísmo, egoísmo e a “natureza do homem”, eu acredito no poder dos exemplos que inspiram. Até a Chapeuzinho Vermelho fez questão de nos avisar que a história não é justa, mas não há razão para contaminar quem ainda quer e pode ser lembrado sem o Lobo Mau. A Márcia, alguns dias depois do desembarque no RJ, ligou para o meu albergue e perguntou “A Manu está aí? Como ela está? Cuidem bem dela, viu?! E diz que eu mandei um beijo!”, eternizando a sua passagem pela minha vida – e, agora, também pelas minhas escritas. O que nos motiva a agir, para o bem e para o mal, em pequena ou grande escala, é a esperança de tornar-se eterno.
O momento não é muito inspirador, mas a liberdade é uma terra fértil para as referências. Crescer não é estar em um estado constante de felicidade, mas é nossa obrigação garantir que as crianças permaneçam em contato com os bons exemplos, descobrindo que há somente uma forma de se tornar verdadeiramente eterno: pela gratidão do outro. “Apesar de nós, amanhã há de ser outro dia” e a eternidade é apenas a vontade de viver um pouco ou muito mais. Ninguém pode tirar de uma criança o direito de acreditar que o bem vence o mal – afinal, só os que acreditam nisso conseguem olhar para a frente e enxergar uma saída. Uma luz. Um despertar. Sem culpar o tempo ou a vida, a responsabilidade de manter a infância intacta é toda nossa: não subestimem as crianças, elas não querem apenas ter do que se lembrar. Elas querem ser lembradas! E são merecedoras de todos os holofotes. Vamos fazer com que crescer seja uma aventura alegre – apesar de todas as circunstâncias.
Por Manuela Fantinel
Foto de Enad Nassar (Divulgação) | Junho de 2015 | Gaza