O que tem o cheiro de mato que me puxa? Inflo as narinas e a bafagem orvalhada que emana do capão me abre uma senda de lembranças sensitivas. Meus pés flutuam sobre a cama fofa de folhas decompostas, e vou deixando pegadas na picada onde chumaços de barba-de-bode pendem de angicos e canjeranas colossais. Não trago facão, então vou me esquivando dos arbustos de urtiga brava e da maçaroca de unhas-de-gato que se precipitam sobre a senda. Tenho de pular troncos caídos e cruzar fios d’água que vertem nas fendas das pedras basálticas.
Ouço o zum zum de um enxame de camoatim silvestre, e sigo a pista sonora até encontrar a colmeia no oco de uma guajuvira por onde escorrem, tronco abaixo, fios de mel translúcido que cato com o dedo, levando à boca um sabor que me parecia definitivamente perdido nos desvãos da memória, mas que agora volta com uma intensidade que me faz ter 10 anos de novo.
Então sigo, de calças curtas, pela senda mágica que me levará ao mesmo arroio em cujas margens eu e meu irmão apanhávamos pitangas e araçás direto do pé e onde, não se sabe como, nasciam, como frutas pré-históricas, romãs quase do tamanho de bolas de boliche. Depois de rachá-los, luzia um veio de rubis que garimpávamos com avidez, sorvendo a doçura da polpa e cuspindo as sementes na água para ver o alvoroço dos lambaris.
Afastávamos a folharada do chão úmido, pois logo abaixo da capa de húmus da mata, era certo encontrarmos a mina viscosa de minhocas que catávamos enfiando as mãos na terra fresca. Sacávamos nossos caniços de taquara, púnhamos a isca no anzol e ficávamos horas a fio na modorrice da pescaria, ouvindo o alarido de tarrãs e o ronco gutural dos bugios que ecoava do perau. Era uma tarde inteira para conseguir dois ou três acarás ou joaninhas, que se converteriam numa fritada que era o mais precioso tesouro gastronômico de nossas vidas.
Na volta para casa, havia ainda o prêmio de nacos de cana-açúcar que mascávamos debruçados na cerca, vendo a vacaria pastar no azevém. De onde vem a paz que dá na gente ao ver um bicho comer? Eu só sei que a ventura de ficar bestando ao sol da campina, sentindo cheiro de mato, vagando com a cachorrada na taipa do açude me põe calças curtas de novo. Tenho dó ter de voltar à minha vida de apartamento. Meninos de apartamento, garotos de videogame, que pena eu tenho de vocês!
Por Marcelo Canellas.
Foto de Renan Mattos.
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