Uma crença no folclore e na literatura da Índia indica que todos os recém-nascidos, no primeiro ou no sexto dia após virem ao mundo, recebem a visita de um deus. Na testa, o deus escreve como será o futuro do bebê – a duração da vida, a ocupação profissional, o nível de pobreza/riqueza e a casta. Com nomes distintos em cada canto do país, o significado da crença é único: “o que está escrito na testa”. Sem tentar simplificar ou diminuir a plural cultura indiana, pontuo, também, que fora do sistema de castas – eles nem chegam a fazer parte da pirâmide – há o que a sociedade hindu chama de “os intocáveis”, os impuros, aqueles considerados “menos que humanos”.
Em um pulo, o cenário agora é a Nova Santa Marta, bairro localizado na região oeste da cidade. Lá está a protagonista desta história, uma menina de 14 anos cuja mãe é diarista e o pai é mestre de obras. O resultado de anos de planejamento financeiro é um cursinho preparatório para o vestibular, onde a Lia (nome fictício), filha única, quer estudar. E é em direção ao centro que a nossa protagonista embarca, no turno inverso ao da escola, para o seu primeiro dia de aula. O professor pede para que todos se apresentem.
– Oi. Meu nome é Lia. Eu sou da Nova Santa Marta…
Surpresa! A pequena turma, composta por estudantes dos principais colégios particulares da cidade, não reage bem.
Uma colega questiona:
– Você é dos sem-teto?
…
A pergunta despertou na protagonista o desejo de abrir mão do seu papel. Talvez seja melhor ser uma coadjuvante, não ser vista e nem lembrada. Será que vale a pena discutir com o destino? Estava escrito, desde 2003, bem no meio da sua testa: menina, negra, sem-teto. “Manu, ela me disse que não quer mais ir para o cursinho. Ninguém conversa com ela. Ela diz que ficam olhando”, conta a mãe, entre um lamento e outro.
Eu fico preocupada – embora não surpresa – com a educação de uma garota que tenta constranger outra garota de maneira tão cruel. Eu fico preocupada, mas não muito. Na verdade, o que me atormenta é a possibilidade de acreditarmos que o nosso futuro é o que os outros veem quando olham para nós. Não! Nem pensar! Encontre o seu próprio roteiro. Ninguém vai escrever na minha testa, ninguém vai escrever por mim. Por aqui, ser “intocável” ganhou outro significado.
Se você é um professor – como é o caso desse, de acordo com o relato que eu ouvi – que se acovarda diante do preconceito e da exclusão: você tem culpa. Se você é o responsável pela educação de uma criança e não faz questão de avisá-la que o mundo não gira em torno do próprio umbigo, então você também tem culpa. E, por fim, assumo a minha culpa e torço para que você assuma a sua. Mesmo com todos os avanços, o número de meninas-negras-vindas da periferia que protagonizam a história ainda é muito pequeno. Mães que choram ao verem as suas filhas sofrerem: não permitam que elas desistam! O centro da cidade nunca será o centro do universo… Dane-se! Há mais poesia nas beiradas. É lá onde os sonhos transbordam.
Às meninas de Santa Maria,
que andem juntas no recreio, na rua e na luta.
À Lia,
uma pequena demonstração de como você fica bem de protagonista.
Por Manuela Fantinel
Foto de Neli Mombelli
Respostas de 4
Vocês da cronicaria estão de parabéns. É tão bom abrir nosso e-mail e ter algo novo , inteligente e gostoso para ler.
Obrigada!
Otima reflexão. Crônica inteligentissima! Parabéns!
Cara Manuela. Tuas crônicas tem sido ótimas. Parabéns. Por favor, há algum outro formato que eu pudesse divulgar alguma das crônicas eventualmente? Muito obrigada.
Muito obrigada, Beatriz! Sim, você pode compartilhar clicando no ícone do Facebook que está abaixo do texto. Se preferir, também está permitido copiar e colar (com os créditos) onde você quiser compartilhar, sem problemas. Beijos!