Ninete no elevador

Eu a conheci no elevador. Ninete não sorriu. Ninete não me cumprimentou. Nem na primeira, nem em nenhuma das outras muitas vezes em que descemos ao térreo ou subimos juntos até o nosso andar. Morávamos nos extremos opostos do corredor, mas isso não nos afastava tanto quanto seu mutismo, quanto a indiferença glacial de Ninete. Só fiquei sabendo que o nome dela era esse porque, certa manhã, ouvi o porteiro do nosso prédio dar “bom dia, dona Ninete”, recebendo um olhar de enfado como resposta. Então percebi que não era comigo. Não apenas eu, mas o mundo inteiro em volta era invisível para ela, ou era visível apenas como contrapeso da existência.

Uma vez me disseram que a velhice pode trazer a rabugice de arrasto, pois existem velhos que, já aborrecidos e sem paciência de viver, não ligam mais para as aparências e nem se esforçam para agradar a quem quer que seja. Ninete era bem velha, talvez estivesse perto dos 90 anos, e cumpria à risca esse modo ranzinza de envelhecer, em que a cordialidade perde o sentido, em que a gentileza já sucumbiu ao desapontamento e à desesperança. Ninete punha todo o peso de sua amargura na bengala, como uma clava transpassando o chão do elevador, e o habitual constrangimento que acomete os passageiros desse cubículo esdrúxulo virava o suplício de uma viagem insuportavelmente longa em seus intermináveis segundos.

Mas eis que chegou o dia do cataclismo. Entrei no elevador e Ninete sorriu. Achei que podia estar vendo coisas, não fosse pela boca ornada com um batom vermelho escuro. O rosto sempre pálido e descorado da anciã me pareceu discretamente rosado de blush. A casmurrice enfezada dera lugar a um olhar carinhoso, então descobri que Ninete tinha olhos azuis. A outra descoberta imediata viria com a quebra de um silêncio que me parecia imutável:

– Está fazendo um calorzinho gostoso, não?

Ninete não apenas falou. Ela disse, com indefectível sotaque francês, a palavra “gostoso”. Tal adjetivo remete a sabor. E ainda que ela tenha se referido a uma percepção de temperatura ambiente, havia sabor naquele comentário banal e totalmente incongruente com as atitudes da velha Ninete do elevador que, naquele dia, mudara-se do prédio, dando lugar a uma outra, afável, cordata e carinhosa. Foi um grande espanto para todos os moradores.

A grande ironia é que ela se transformara para morrer. No dia seguinte, como não descera conforme fazia toda manhã havia décadas, o zelador, depois de tocar a campainha e bater palmas sem resposta, resolveu arrombar a porta. Encontrou o corpo de Ninete serenamente inerte na cama. Ninguém jamais soube o motivo de sua súbita alegria. Mas talvez faltasse uma nesga de misteriosa felicidade para que Ninete pudesse partir.

 

Marcelo Canellas.
Foto de Renan Mattos.

 

Cronica falada

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