Jorge é uma pessoa incrível. Está aí um cara que eu admiro. Ele é médico e já atuou como voluntário em missões humanitárias na Amazônia Ocidental, no coração da selva, onde doutor nenhum quer sujar o jaleco, cuidando de índios tuberculosos e curumins desnutridos. Também viveu em Guiné Bissau por dois anos, tratando aldeões que nunca tinham visto um médico na vida. Quando voltou para São Paulo, fez concurso para a prefeitura da capital. Está lotado num hospital do SUS porque acha que a saúde pública é sua vocação. A família de Jorge fica enlouquecida porque, desde a faculdade, todos sabiam que ele seria um profissional brilhante e poderia estar ganhando uma grana ferrada em hospitais privados. Mas Jorge nasceu para zanzar pelas enfermarias da periferia e, no fundo, embora condoídos com seu salário de barnabé, os pais e os irmãos de Jorge têm é um imenso orgulho dele.
Jorge é um bom amigo. Daqueles com quem você pode contar a qualquer hora, disposto a enfrentar qualquer perrengue. É solidário e generoso. Jorge é um homem bom. Neste seu perfil, que traço meio como repórter, meio como cronista, eu normalmente deixaria de fora um aspecto de sua privacidade que nada interessaria ao leitor, somente ao próprio Jorge. Acontece que, dia desses, ele foi ameaçado e teve a fuselagem de seu carro riscada, em que o vândalo escreveu assim: médico viado. Foi só então que eu soube que Jorge é gay. Ainda que me pareça esdrúxulo, em pleno século 21, a orientação sexual de alguém virar um xingamento, trata-se da expressão mais crua da intolerância homofóbica que se cristalizou na percepção tacanha de certo tipo de gente. Dane-se que Jorge é íntegro, inatacavelmente ético e correto em todos os aspectos de sua vida como pessoa e cidadão. Jorge é gay e, por isso, teve o carro riscado.
Então me dou conta de que ignorância nada tem a ver com escolaridade, pois foi um grupo de psicólogos formados na faculdade que assinou a ação popular da cura gay. Esses profissionais, detentores de diploma de curso superior, defendem as terapias de reversão sexual. A decisão da Justiça do Distrito Federal, favorável ao pleito deles, liberou terapeutas a tratarem gays e lésbicas como doentes, sem sofrerem qualquer tipo de censura dos conselhos de classe. A ideia medieval de que a orientação sexual é uma escolha já foi, há muitos anos, desmascarada pela ciência. Lá se vão 26 anos que a homossexualidade foi retirada da lista de doenças da Organização Mundial de Saúde. Isso foi em 1990. Que a justiça do Distrito Federal retroceda um quarto de século não me espanta tanto quanto a raiva que algumas pessoas sentem dos gays. O que as incomoda tanto? Não sou especialista, mas desconfio tratar-se de um caso de histeria coletiva de fundo sexual.
Mas nem tudo está perdido. Uma outra decisão judicial, na contramão da intolerância homofóbica, liberou a exibição da peça O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu que constava da programação do Porto Alegre em Cena. Na decisão proferida, o juiz negou o pedido de proibição do espetáculo feito por um advogado que alegava vilipêndio religioso em razão da protagonista da peça ser a atriz e ativista travesti Renata Carvalho. Na sentença, o juiz argumenta: “A peça, que possui texto de Jo Clifford, dramaturga transgênero escocesa, propõe — fato notório — uma reflexão sobre o preconceito que recai sobre orientações sexuais das pessoas. A atriz e travesti Renata Carvalho corporifica figura religiosa no tempo presente, com o que não pratica ilícito algum. Se a ideia é de bom ou mau gosto, para mim ou para outra pessoa, pouco importa”.
Se é de cura que estamos falando, o juiz – José Antonio Coitinho é o nome dele – mais do que qualquer psicólogo, contribui muito para a cura de um mal que nos acomete nesses tempos bicudos: a desqualificação de seres humanos, seja como artistas, seja como cidadãos, seja como iguais em uma sociedade múltipla e diversa, em função de sua orientação sexual. Salve Jorge, salve Renata, salve o respeito a tudo o que é diferente!
Por Marcelo Canellas.
Foto de Neli Mombelli.
Uma resposta
Muito bom, Marcelo.