O velho

O velho tinha a cara magra e alva, ornada por olhos de um azul diáfano e triste. Olhava como se doesse, como se a luz turquesa de sua mirada fosse a fagulha renitente de um pesar remoto. Chovia mansamente. As gotículas carreadas sobre as telhas saciavam a sede dos sabiás que, empoleirados nas calhas, desfrutavam do bebedouro que o aguaceiro engendrou.

O velho a tudo via com atenção pétrea, debruçado sobre o parapeito da janela da sala de uma casa térrea e sem jardim, cuja parede frontal dava direto na calçada. Pode ter sido um pingo perdido da garoa a lhe atingir a cara, mas me pareceu que uma lágrima escorrera pelo canto do olho esquerdo.

Se era pranto, o velho o tornara estéril de emoção exterior, pois não havia contração alguma nos músculos de sua face anciã, imóvel e rude. Se era choro, o velho o vertia para dentro, fazendo da lágrima fujona o escape consentido das aflições ocultas. Podia ser o rescaldo de um arrependimento, a lamentação do não dito, do jamais realizado, a danação perpétua de uma oportunidade desperdiçada.

Chovia mais forte. O velho só desviou o olhar da calha abarrotada de pássaros quando um jovem casal passou na calçada oposta, do outro lado da rua. Sem guarda-chuva, empapados pelo aguaceiro, a moça e o rapaz, abraçados, divertiam-se à larga, gargalhando alto, fazendo troça, gracejando sem parar.

O velho franziu o cenho, como se aquela alegria sem motivo o ofendesse. Fechou a veneziana com tal força e impacto, que o casal parou um instante para ver de onde vinha o estrondo. Mas não puderam entender o que se passava e nem quem os tinha observado, pois a janela encerrada trancafiou o velho na prisão escura de suas batalhas perdidas.

O moço e a moça resolveram, intempestivamente, enlaçar-se como dois dançarinos, e puseram-se a bailar ao som imaginário de uma valsa, pisando nas poças, respingando lama, rodopiando em volta do bueiro num rito involuntário e sacrificial da tristeza do velho, em frente à casa do velho, sem o consentimento do velho, sem o testemunho do velho, mas nos redimindo a todos com aquele bailado esdrúxulo. Depois seguiram abraçados, dando sabor e viço à tarde chuvosa na rua do velho.

Por Marcelo Canellas.
Foto de Renan Mattos.

 

Cronica falada

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