Beija-dor

O silêncio da noite era como um jogo. Quanto mais prestava atenção na sua calamidade, mais parte eu me sentia do enredo. Talvez também como nos filmes, quando você imagina a cena clássica de uma menina sentada na janela de seu quarto observando as estrelas. Havia me acostumado com a plenitude que alcançava todas as madrugadas quentes como o asfalto da avenida Rio Branco ao meio-dia.

Voltando ao meu quarto, minha conexão com o infinito iria se esvaindo aos poucos enquanto o barulho do ônibus ecoava meus ouvidos às cinco e meia da manhã. Olhei para fora da janela e avistei um bando de pássaros migrando para o Sul. Era tarde, ou de manhã, pensei que necessitava deitar-me no travesseiro para enfrentar mais um dia caótico, mas fui pega de surpresa quando um ser estranho entrou no meu quarto. Minhas pernas congelaram e meus olhos arregalaram feito duas bolitas azuis. “É hoje que eu morro”, loucamente pensei.

Tinha um certo medo por instinto, como uma tartaruga recém nascida enfrentando peixes famintos no oceano. Me levantei brevemente e fui direto à caça, quando percebi que era um ser inofensivo. Longe de ser ornitóloga, vi que era um beija-flor. O filhote ficava andando em círculos dentro do ambiente tentando sair, e meu felino, que me fazia companhia, despertou de um sono profundo. O dever de ser muito cautelosa para ajudar algo mais vulnerável estava em minhas mãos. Todavia, como eu poderia proceder? Pegar uma vassoura, talvez? Por uns instantes, sentei-me na cadeira e imagens se sobressaíram na minha cabeça. Uns chamam de déjà vu, mas não era necessariamente uma base científica confiável para meus pensamentos que estavam demasiadamente acelerados. Era algo sobrenatural, ou quase uma intuição.

Ao ouvir as asas batendo, pensei em uma carga. Uma carga que durante cinco anos pesa em meus ombros, quase todos os dias. Será que é assim que o beija-flor também de sente? A sufocação e a sensação de não pertencer a lugar nenhum? Parei e ri. Ri da situação e ri de mim mesma. “O homem só será livre quando sair da caverna e enxergar a verdade˜, pensei na frase de Platão enquanto pegava a vassoura. Meu quarto era a caverna, e, bem, o beija-flor era eu.

 

Por Juliana Brittes
Foto de Juliana Brittes

 

 

* Esta crônica foi produzida por Juliana no Workshop de crônicas com Marcelo Canellas, uma das recompensas para quem colaborou com o financiamento coletivo do Cronicaria. Marcelo propôs que as participantes escrevessem a partir de uma cena, que era a de um beija-flor adentrando em uma casa por uma janela.

 

 

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