João não se importa

Digamos que se chame João. Pois o tal João parou sua caminhonetona importada na vaga reservada para idosos, no estacionamento do supermercado. João não é idoso, está bem longe disso. Mesmo assim levou o tempo que foi necessário para encher seu carrinho de compras, reclamar do tamanho da fila, bradar contra a lerdeza do funcionário do caixa e praguejar contra a inépcia do empacotador.

Quando, finalmente, voltou ao estacionamento, havia uma senhora tentando encontrar um lugar para o seu fusca. Ao ver que um jovem havia ocupado uma vaga para idosos, protestou. João sentiu-se ofendido. É um homem atarefado, não tem tempo a perder, não sabe “para que tanta vaga para velhos, se os velhos não fazem nada mesmo e bem podem esperar um pouco por aqueles que realmente trabalham e sustentam este país”.
 
A velha em questão se enfureceu, e o chamou de mal-educado. João respondeu aos gritos, dizendo que ela era recalcada por ser velha e feia como uma bruxa. Depois jogou as compras no porta malas, deu ré intempestivamente, num solavanco, e foi embora cantando os pneus. João está certo de que aquela senhora teve o que mereceu ao xingá-la de velha e feia, como se velhice fosse doença, e não uma contingência do tempo a que todos estamos sujeitos; como se feiúra fosse defeito, e não uma subjetividade relativa.
 
Esse tipo de João infringe qualquer regra de civilidade que possa atrapalhar seu tempo e seus negócios. Se for preciso, avança o sinal vermelho. Se necessário, faz uma conversão irregular. Mantém os vidros fechados porque não suporta pedintes e mendigos, “essa gente parasita que alimenta a delinquência”. A solução para a violência? Muros, cerca elétrica, vigilantes. João acha que assim protege a si e à sua família, já que o governo não faz nada. Aliás, João odeia política, como se política fosse uma criatura de vontade própria, e não a expressão da vontade das pessoas que elegem os políticos que aí estão.
 
Não adianta, João acredita que todo político é ladrão, e que só tem corrupto no governo, embora não hesite em pagar propina ao guarda de trânsito ou a um barnabé qualquer que acelere a tramitação de um documento de seu interesse. O interesse de João é forrar seus bolsos de bufunfa. Seu prazer orgástico é cantar os pneus de uma caminhonetona. João não se importa com o resto. Coitado do João. Quando ele ficar velho, e olhar pelo retrovisor uma vida vazia, não vai encontrar nem vaga para estacionar seu carrão no supermercado.
 
 
Marcelo Canellas.
Foto de Renan Mattos.
 

Cronica falada

Respostas de 2

  1. Mil vezes parabéns Marcelo, por este texto que, fantasticamente, relata uma realidade de tantos Joãos por aí, que fazem parte da nossa paisagem diária.

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