Sobre o Velho que encontrei

Encontrei o Velho sob os escombros de seu passado. Ele agonizava, arfando o peito em devaneios incompreensíveis. Fiz menção de retirá-lo, tentando arrastar seu corpo fraco para fora. Mas ele me ordenou que parasse. Então pontificou, lívido de remorso:

“Tenho saudades do que não fui. E daquele telefonema que não dei. O beijo que faltou ainda está acuado no desvão dos gestos perdidos. E aquela palavra não dita ecoa no corredor gelado e mudo do mal-entendido. Nenhum minuto passa impunemente. E o que era antes traz agora as escaras do tempo acontecido.

 Arquivo o alumbramento da surpresa de que não me permiti desfrutar. Está em alguma gaveta do sentir, emperrado no fundo falso de um medo qualquer. E todos os receios camuflam a vida por detrás das obviedades da rotina. Aquele dia em que não saí na chuva para não me resfriar, em que não bati o pênalti para não errar, em que não cantei para não desafinar foi um dia sem riscos. Mas foi também um dia sem cor, tão imperceptível e pálido que talvez nem tenha existido como dia. Foi apenas um nada no caminho da existência.

Guardo no meu baú as boas máscaras que não usei. Sim, há máscaras que são boas, pois mais revelam que escondem. Como no teatro medieval, em que se distribuem papéis marcados e consentidos, mas que podem ser trocados de modo a troçar da narrativa esperada e subvertê-la antes do fim. Não para confundir. Muito mais para intrigar e conferir alguma graça ao devir. A mesma e insípida cara – para não causar sobressaltos diante do espelho! – é que serve para enganar e iludir.

Num descuido, esbarro no meu jarro de desculpas esfarrapadas. Os estilhaços se espalham pelo chão. E então posso ver o caldo escuro da falta de dinheiro, da falta de tempo, da preguiça, das mentirinhas benignas que viraram incômodos tumores de cujo desconforto não consigo me livrar.”

Disse isso e depois morreu. O Velho se foi sem luto. Sem choro de ninguém. E eu corri de pés descalços, me atirei na lama, fui a um parque de diversões. Telefonei para o meu irmão. Dei um beijo na minha amada. Comi quindim de madrugada. Ao fenecer, aquele Velho me salvou.

Marcelo Canellas.
Foto de Renan Matttos.

 

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