Rua da Desigualdade, nº 0

Já ouviu falar em uma casa muito engraçada, que não tinha teto e não tinha nada? O mapa indica o melhor caminho de acesso: a história da pobreza. De acordo com o calendário, a data ideal para pegar a estrada é entre o Dia das Crianças e o Natal, um suspiro de realidade no espirro comercial. Você anda e corre e anda outra vez e nunca chega ao destino – não há jardim ou janela, pois tudo que há é a fronteira de dois mundos onde quem se cala está, queira ou não queira, dobrando à direita. A frase “tanta casa sem gente e tanta gente sem casa” estampa uma porta prática e eficiente, simples e resistente, que ninguém está autorizado a entrar. A luta mora lá.

Qual é a verdade que as nossas cortinas escondem? Há alguns metros de onde eu e você estamos agora, um entrevistado responde à pesquisa sobre a Tolerância Social à Violência Contra as Mulheres (Ipea, 2014) opinando que “roupa suja deve ser lavada em casa” (89%) e que “em briga de marido e mulher não se mete a colher” (82%).  Quando uma mulher é violentada dentro de casa, eles não se impressionam. Mas quando o Dia da Mulher motiva protestos em pelo menos 70 cidades brasileiras e greves em mais de 45 países, as nossas vidas não saem de suas bocas. Se uma criança dorme na rua, não é problema deles. Mas quando 10 mil pessoas marcham por uma moradia digna (como no Ato em Defesa do Povo Sem Medo, em São Bernardo do Campo), eles resolvem se expressar (e se revoltar).

A preocupação não é com a violência doméstica ou com a falta de moradia, mas com a denúncia de agressão, com a ocupação do espaço e com as manifestações – a reação só existe diante do movimento. No 10º país mais desigual do mundo (RDH, 2017), lutar por direitos – como o direito à moradia – é ser “de esquerda”. Mas quando lutar por um direito é ser de esquerda, quem se atreve a dobrar à direita? Mais de 600 ocupações estão “protegidas” pelas cortinas da hipocrisia só em Porto Alegre: é fácil fugir para não ver. O resultado do muro invisível que divide a população brasileira trouxe para o país, em 2017, o “título” de líder mundial em uso de carros blindados…, “mas nós não estamos em guerra”. Entre trabalhar para almoçar e trabalhar para manter as próximas cinco gerações alimentadas, quem se atreve a falar em meritocracia? É a desigualdade abominável de uma população educada para se revoltar contra quem luta por uma moradia respeitável e não para se inquietar com a violação de um direito ou com a falta de um lugar para existir.

De uma diversidade possível surgiram contrastes impossíveis. Se ter uma casa é ter para onde voltar, eu volto para o colo da minha mãe e para um texto que me permita lamentar: o excesso de casas vazias não consegue reverter a escassez de corações cheios. Conhecer a história abre algumas cortinas, mas o caminho é para uma casa sem saída. Para os “perdidos” no “mapa”, a solução é ocupar para se encontrar – você se atreve a afirmar quem merece mais ou menos luz no país dos contrastes? Ocupar é ter por quem lutar e eu dobro à esquerda quantas vezes o Brasil precisar.

Por Manuela Fantinel
Foto de Renan Mattos

 

Cronica falada

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