A nova idade das trevas, ou o que houve com o Rio Grande do Sul?

Quarta-feira que vem é o dia do gaúcho. Já tem quase 30 anos que eu não moro mais no Rio Grande do Sul, mas todo ano, quando o 20 de setembro se aproxima, tiro onda com quem estiver por perto, seja lá onde eu me achar no momento. Digo que somos politizados, digo que somos cultos, digo que somos bonitos, digo que somos os tais. É galhofa, troça pra “inticar”, como dizemos no pago, e criar uma ambiência benigna de rivalidade infantil, como se o grenal fosse sempre de nós outros contra os que nasceram ao norte do Mampituba.

Nossa falta de modéstia é parte de nossa identidade cultural, já cristalizada Brasil afora, assim como concidadãos de outros estados foram assumindo uma fisionomia de hábitos reforçados na estereotipia que se arremeda na repetição dos clichês, como atesta o divertido Ode à Impropriedade, do poeta paulista José Paulo Paes: “De cearense sedentário,/ baiano lacônico,/ mineiro perdulário,/ Deus nos guarde./De carioca cerimonioso, /gaúcho modesto, / paulista preguiçoso, / Deus nos livre e guarde.” E para quem vive fora da querência, a afirmação do gauchismo, e da imodéstia como virtude, é um divertimento exacerbado em todo mês de setembro. Ou era, até este tenebroso setembro de 2017.

Já tínhamos um governador que despreza a educação, ofendendo a inteligência dos gaúchos com um discurso de contador provinciano, como se administrar finanças fosse empurrar as peças de um ábaco para cortar gastos e aviltar salários, sucatear escolas e embaçar o futuro de uma geração de crianças obrigada a conviver com a precariedade cotidiana que sufoca a criatividade e o florescimento pleno da inteligência. Sim, já tínhamos um governador que não enxerga a educação como óbvia prioridade. Eis que agora aparece um prefeito de nossa capital como inimigo da arte.

O que aconteceu em Porto Alegre, neste setembro para esquecer, nos trará muitos anos de vergonha. O Movimento Brasil Livre, investido de uma autoridade moral autoconferida, definiu o que é bom e correto como forma de expressão artística. Para eles, do MBL,  a exposição Queermuseu: Cartografias da Diferença na Arte Brasileira, não só não era aceitável como deveria ser extirpada por, supostamente, tratar-se de arte pornográfica e pedófila. Antes de se questionar se uma exposição com 270 obras que incluem a presença ilustre de Portinari, Volpi e Lygia Clark, seria mesmo essa aberração que os garotos do MBL dizem ser, o Santander Cultural, com receio de ver sua reputação arranhada por um julgamento moral, optou pela censura e cancelou a exposição.

Mas o pior, para ferir mortalmente nosso orgulho gaúcho, ainda estaria por vir. O prefeito Nelson Marchezan Júnior manifestou expressamente,  em postagens nas redes sociais que depois ele apagou, apoio à censura promovida pelo museu.  Então ficamos sabendo que um político jovem, de apenas 45 anos, fez do seu preconceito um instrumento de cruzada moral, criminalizando artistas ao reforçar um discurso de ódio. Os integrantes do MBL são ainda mais jovens, o que demonstra que mocidade nada tem a ver com lucidez. Mas é que sou do tempo em que o comportamento da juventude era potencialmente rebelde, contestador e inquieto. Essa juventude cínica e autoritária que quer nos dizer o que podemos consumir como arte não passa da mesma velharia que há séculos sataniza tudo o que é novo e diferente. Eis a nova idade das trevas que nos impuseram e aceitamos. O que houve com o Rio Grande do Sul?

 

Marcelo Canellas.

Imagem: Cruzando Jesus Cristo Com o Deus Shiva”, obra de Fernando Baril, 1996 (Foto: divulgação)

 

Cronica falada

6 thoughts on “A nova idade das trevas, ou o que houve com o Rio Grande do Sul?

    1. Pois é um ótimo texto Marcelo. Creio que deu a “loka” na gauchada , parece que não sabem do que estão falando?
      Arte é coisa séria e não pra qualquer mbl falar e fazer besteira. O Santander mostrou que não é uma instituição séria e não merece receber a Arte. Quando pensamos que estamos avançando acontece um absurdo destes que comprova o retrocesso e atrazo de alguns.

  1. Você não deve ser pai?? O que há de arte em um homem negro transando com dois homens??? E se você realmente for pai, o que responderia se seu filho perguntasse.. o que é isso pai???

    1. Caro, Rafael. Sou pai, sim. E tenho dois filhos que procuro criar numa cultura de tolerância e de respeito às diferenças. Eles têm de saber que o mundo é diverso e múltiplo, e que entender isso não é aderir, é exercitar a convivência con o que nos é diferente. Se meus filhos me perguntassem sobre uma obra em que tal cenário que vc descreve aparece, eu diria que trata-se de uma das representações da vida e do comportamento humano. Arte é sempre representação, nunca é a vida em si. Arte é muito de interpretação e, portanto, é elucidada a partir de nossa postura de compaixão e generosidade, ou, infelizmente, incompreendida a partir de nossos preconceitos a priori. A meu ver, a exposição Queermuseu provoca reflexão sobre diversidade. Eu não teria problema algum em ir com meus filhos ao museu e discutir com eles seu conteúdo. Mas isso é o que eu faria. Ninguém é obrigado a ir a uma exposição se não quiser. Abusivo e anticristão é impor aos outros a sua verdade. Marcelo Canellas

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