Para que um cronista escreve?

Eu me faço a pergunta acima desde meados de 2002, quando o jornalista Nilson Vargas, então editor-chefe do recém criado Diário de Santa Maria, me convidou para publicar crônicas no jornal que ele estava implantando. Eu, de pronto, recusei. Disse a ele que era repórter de televisão e que não sabia escrever crônicas. Nilson não aceitou minha recusa argumentando que eu sabia sim, porque boa parte de minhas reportagens especiais veiculadas na TV Globo traziam narrativas com características de crônica. Nunca tinha pensado nisso. Refleti um ou dois dias e resolvi aceitar o convite.

As primeiras me saíram péssimas. Querendo ser Veríssimo e Rubem Braga ao mesmo tempo, eu conseguia ser apenas um mau imitador de ambos e me sentia um intruso, um penetra desastrado que invade a festa alheia esbarrando nas mesas e derrubando o bolo. Foi então que resolvi ser eu mesmo, e aí a crônica foi cabendo em mim e ficando mais confortável como um sapato novo que me causou bolhas e calos nos primeiros dias, mas que foi laceando com o uso, moldando-se ao formato do meu pé.

Nesta caminhada, aos poucos, fui trazendo comigo o pó da estrada que molda o estilo e, com ele, veio o prazer da anti-notícia, dos motes da desimportância, dos significados ocultos das coisas miúdas, do esgarçamento do banal que a crônica produz pela via dos sentidos e da subjetividade. Passei a escrever também para o jornal A Cidade, de Ribeirão Preto e, em 2013, publiquei, pela editora Globo, o livro Províncias – crônicas da alma interiorana. O tempo passou, deixei de escrever para jornais e hoje me aventuro cronicando em plataformas digitais. Entretanto, a pergunta permanece: para que um cronista escreve?

Eu sou jornalista e sei muito bem para que escrevo. Um repórter como eu escreve para contar, para revelar fatos obscuros, para denunciar injustiças, para confrontar o poder, para dar voz aos que são subjugados, para defender a notícia como bem público pertencente à sociedade. Um jornalista escreve porque é irresistivelmente tragado pelo compromisso de produzir informação útil e de qualidade e, portanto, um tipo de conhecimento que pode servir para mudar a vida das pessoas. É por essa razão que eu, como jornalista, escrevo. Mas a crônica nada tem a ver com isso. Crônica pode até conter notícia, mas não é reportagem, está num outro terreno narrativo, trata-se de um gênero literário. Então, quando sou cronista, para que escrevo?

Tentei buscar respostas nos grandes mestres de outros gêneros. William Faulkner foi irônico: “escrevo para ganhar a vida”. George Orwell foi sincero: “escrevo por vaidade, para deixar uma marca, para que as pessoas lembrem de mim”. Fernando Pessoa foi Fernando Pessoa: “eu escrevo para salvar a alma”. Mas, para mim, foi o poeta João Cabral de Mello Neto que fez a reflexão mais interessante sobre o ato de escrever. Ele disse que um escritor escreve por dois motivos: ou por “excesso de ser”, como fazem os escritores prolixos e transbordantes, ou por “falta de ser”. E que ele, João Cabral, fazia parte desse último grupo: ” eu sinto que me falta alguma coisa. Então, escrever é uma maneira que eu tenho de me completar. Sou como aquele sujeito que não tem perna e usa uma perna de pau, uma muleta. A poesia preenche um vazio existencial”.

Como o genial autor de Morte e Vida Severina, talvez eu escreva porque me falte algo, talvez a crônica preencha um espaço de subjetividade que a reportagem não me oferece. O jornalismo impõe um limite, o repórter só pode ser subjetivo até o ponto em que não comprometa a integridade da notícia. O cronista não tem as amarras da precisão, pode ser radicalmente subjetivo sem trair o escopo de seu ofício. Mas pode ser que minha falta seja de outro tipo e, na verdade, eu escreva crônicas por pura carência afetiva. Se for por isso, estarei bem acompanhado. Gabriel García Marquez disse que escrevia romances “para que meus amigos me amem mais”. Falando de outro modo, Caio Fernando Abreu disse o mesmo: “queria tanto que alguém me amasse por alguma coisa que escrevi!”.

Eis a grande vocação humanista da literatura: buscar no outro o amparo da significação, dar sentido à vida olhando em volta e fazendo de impressões e interpretações pessoais um ritual de partilha pois, como disse Jorge Luís Borges, “cada palavra é um símbolo a ser compartilhado”. Não nego, olho para o leitor esperando que ele me enxergue. Se uma frase minha puser uma pulga atrás da orelha, causar um incômodo, oferecer algum conforto, arrancar uma quase-lágrima ou um meio sorriso já terá valido a pena essa bela aventura de cronicar.

Por Marcelo Canellas.
Foto de Renan Mattos.

 

 

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