O remetente antiquado

O carteiro da minha rua acho que se chamava Jair. Naquele tempo os carteiros vestiam um uniforme mais puxado para o cáqui, não era o amarelo berrante que usam hoje. Jair tinha um sacolão de estopa a tiracolo, de onde puxava cartas escritas a mão. Isso não existe mais. Não por causa da aposentadoria do Jair, de quem nunca mais ouvi falar, mas porque, desde que inventaram o e-mail, as cartas também tiveram de se aposentar. Ninguém mais escreve para ninguém. Os carteiros de hoje viraram entregadores de encomendas, contas e boletos, o que desbotou o encanto desse ofício.

Que graça tem entregar um envelope sem que seja possível especular sobre seu conteúdo? Certa vez, ao me estender uma carta perfumada, Jair troçou:

– Aí, hein! Namorando guria de Porto Alegre, moleque?

Três cartas perfumadas depois, recebi uma, da mesma remetente, sem perfume algum. Ao me entregar, Jair já foi logo me avisando:

– Boa coisa não é…

Não era mesmo. Ansioso, abri ali, na frente do Jair, um conciso pé na bunda de um só parágrafo. Desconcertado, mostrei a ele. Solidário, depois de ler, o carteiro inventou um erro de concordância que não havia e me consolou:

– Não era mulher pra ti. Não sabe nem conjugar os verbos…

Nesta época do ano, Jair me entregava sempre uma carta da minha avó de Gravataí. Ao ler o endereço manuscrito no verso, deduziu:

– Tua avó é bem velhinha, né? Ela bota assim: “Gravataí, RGS” em vez de “Gravataí, RS”. Abreviação de gente antiga.

Minha avó era bem velhinha mesmo, mas de uma lucidez tão prolixa que contava, detalhadamente, em páginas e páginas de impecável caligrafia, toda a rotina de cada um dos meus seis tios, as peripécias de todos os meus nove primos, lembrava os aniversários e casamentos do ano vindouro, e pedia por meu pais e meus irmãos a Nossa Senhora Aparecida, São João Batista e a um outro que não me lembro, mas que deve ser São Francisco de Assis, dada a quantidade de histórias que ela nos contava nas férias sobre o Chico italiano que ficou pelado pra virar santo.

Ter saudade de cartas entrega o meu desajuste. Talvez eu seja antiquado, talvez eu seja bem velhinho. Vou tentar encontrar o Jair. Na carta que eu escrever pra ele, vou botar assim no endereço: “Santa Maria, RGS”.

 
Marcelo Canellas
Foto de Renan Mattos

 

Cronica falada

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