O belo na feia cicatriz

Cidades são como pessoas. Têm cara, fisionomia. É certo que umas têm gênio forte e outras são frouxas e sem graça. Umas são soturnas e rabugentas, outras alegres e luminosas. Mas cidade é feito gente, vai formando a personalidade nos traços herdados e nas experiências vividas. A identidade urbana é feita de cores, cheiros e trejeitos que o povo lhe dá. A cidade mimetiza o homem. E o espaço físico, moldado pela vontade humana, assume o rosto com que nos reconhecemos. Querem ver?

A que cidade me refiro quando falo no sobe e desce das lombas, na lembrança ancestral dos trilhos, da nostalgia dos ferrinhos, no bulício estudantil da juventude, dos milicos acorrendo aos quarteis, dos redemoinhos de pó levantando as saias e fazendo circular carrosséis de papel e lixo nos dias de vento norte, na umidade escorrendo nas paredes em gélidos dias de inverno, do aroma de galeto português, do risoto de domingo dos gringos, da fama do Xis abagualado, da interjeição “bêi!” – aperfeiçoamento cabal do prosaico “bah” de outras plagas -, da bafagem cosmopolita que vem de fora contraditando a província visceral de que somos feitos?

É claro que se você é de onde sou, ou se já morou por um tempo nessa nossa amada urbe, vai se reconhecer no parágrafo acima. Mas para todas as outras pessoas, de outros rincões e mesmo de outros continentes, duas palavras, desgraçadamente, estarão para sempre ligadas ao nome da nossa cidade: “boate Kiss”. Quem pronunciá-las, acionará no interlocutor uma associação imediata a Santa Maria da Boca do Monte. O que podemos fazer para renegar essa chaga em nossa face de cidade? Nada. Simplesmente não podemos renegá-la porque ela está grudada em nós. A grande decisão que temos de tomar é se vamos vestir o capuz da vergonha, na tarefa inútil de esconder o passado, ou se vamos mirar o espelho de nossas dores e enfrentar com dignidade essa nossa colossal cicatriz.

É Nietzsche quem nos dá o caminho das pedras. Em seu ensaio “O nascimento da tragédia grega a partir do espírito da música”, o genial filósofo alemão se pergunta: por que os gregos, em oposição à tradição cristã, não oferecem um céu para depois da tragédia? Para os gregos, não havia a redenção da comédia. Tragédia era tragédia. Como foi possível, sendo dominado por esse sentimento trágico da vida, não sucumbir ao pessimismo? O próprio Nietzsche responde: porque os gregos transformam a tragédia em beleza. O belo não elimina o trágico, mas o torna suportável. Estamos diante de nossa grande oportunidade de ressignificar a tragédia de Santa Maria. E a ferramenta para isso é a memória. A experiência da vida pode ser reinventada, reinterpretada e contada. Memória e narrativa são inseparáveis. Se há a marca trágica da omissão, da ganância e da injustiça, há também uma beleza sublime no resgate de 242 trajetórias de vida para reuni-las num Memorial, um espaço público destinado ao respeito, à saudade e ao aprendizado que só a reflexão proporciona. O que pode haver de mais belo no espírito solidário de um esforço coletivo para homenagear a vida a partir de um episódio em que a morte foi a expressão final da vileza mais torpe?

A recente desapropriação do prédio da boate Kiss e o lançamento da campanha para financiamento de um concurso público nacional de arquitetura para a construção do Memorial às Vítimas da Tragédia recompõe a altivez em nosso rosto de cidade. Nosso lugar na História, como cidadãos, como comunidade, será redefinido pela escolha de enfrentar nosso passado recente. Somos nós que vamos bancar a narrativa da tragédia, somos nós que vamos explicar o acontecido, somos nós que vamos redirecionar o futuro de nossa juventude, mais seguro e luminoso, a partir do alerta perene que evita a repetição da catástrofe. Um memorial serve para isso. Será belo, pleno de significado, enfrentando o trágico com a força da vida. Quando ficar pronto, Santa Maria não será mais a cidade da tragédia. Será conhecida, em todo canto, como a cidade do respeito e da coragem. Será a cidade do Memorial erguido pela comunidade. Então nosso rosto sulcado, nossa face marcada por uma feia cicatriz viverá a beleza de se reconhecer no generoso ato do acolhimento a todos que têm saudade.

Por Marcelo Canellas.

Foto de Renan Mattos.

 

Cronica falada

4 thoughts on “O belo na feia cicatriz

  1. Texto lindo, nós filhos de Sta. Maria, não podemos esquecer e como o texto diz podemos minimizar um pouco a dor e a saudade homenageando a vida e que seja feita justiça as 242 vitimas. Essa cicatriz vai nos lembrar o quanto sofremos e que nunca mais volte a acontecer.

Deixe uma resposta para DANIELA S SIQUEIRA Cancelar resposta